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Prefácio de Ô FIM DO CEM, FIM... por Angélica Sátiro

Caros Leitores e Caras Leitoras,

Ao ler algo instigante, não somente se lê o que está escrito diante de nós, mas também se relaciona esse escrito a textos anteriores que entram em relação com ele; além do mais, é possível fazer uma leitura da experiência vivida durante esse processo. Nesse sentido é que ler o livro do nosso astrofísico foi uma aventura que ocorreu de maneira dialógica em minha mente. Foi assim que me vi diante da obra do Paulo Marques (também conhecido como Pedro Paulo): estimulada a dialogar com sua didática-arte, com seus futuros leitores, comigo mesma e com vários outros interlocutores. Certamente esse efeito só foi provocado porque ele é o Mestre de Mestres! Elegi a carta como forma de apresentar o autor e sua obra e também de compartilhar com vocês a vivência dessa leitura, motivada por uma sensação que pretendo resgatar. Escrevi de um modo lento, pausado, até com suspiros e olhares perdidos no horizonte. Afinal, escrever uma carta é compartilhar uma experiência que envolve sentimentos, inquietudes, dúvidas e dádivas. Foi essa a maneira que encontrei de ser testemunha privilegiada do lúcido poema didático que começa afirmando: “Este livro, é, luz do mundo”.

Com base em alguns dos diálogos de Platão, comecei a pensar na palavra desta obra como se fosse um phármakon, palavra grega que tem uma triple significação: por um lado é remédio, cura, antídoto; por outro é veneno, droga, e, por outro ainda, é cosmético, colorante artificial. Pedro Paulo compartilha palavra, por ele considerada poderosa. A palavra que não pode ser esquecida e, por isso, é registrada para ser compartilhada. “... dentro das trevas exsterior... por nome de imférno, esta espanção fica intregue ao esquicimento”. A palavra com a força suficiente para provocar a evolução humana, por meio do esclarecimento, da consciência e da compreensão de seus significados.

Leio o autor que trata de veicular essa palavra-remédio, capaz de curar o humano de suas enfermidades. O Mestre demonstra essa preocupação curadora, não somente porque apresenta remédios naturais e fitoterápicos, como também por ser ele próprio porta-voz da medicina popular e sua maneira de ver o parto, a anestesia, a saúde bucal e a relação com os perigos da natureza. Mas, principalmente, por se comprometer com a cura, enviando palavras-antídoto para combater a injustiça social e fomentar o entendimento humano. O autor usa a palavra como fonte de cura quando conta suas histórias, quando explica sua ciência, quando orienta com sua didática e quando instiga nossa reflexão com sua criatividade e capacidade inventiva. “ quem ler este, livro não ficam arrependido (...) é notório; e razuavel; que este livro não pode ficar moratório” – esclarece o Mestre – "...ficam livre de ser intóquissado...”. Ainda que eu leia a palavra do Pedro Paulo como cura, como remédio, não deixo de seguir questionando o sentido desse tecido que pretende ser luz do mundo. Compactuo, assim, com o que afirma o filósofo Derrida no seu livro A Farmácia de Platão: o remédio é inquietante em si mesmo. O que podem significar as palavras desse livro, além da minha capacidade de interpretá-las? A palavra presente na palavra e a palavra ausente da palavra compõem esse texto. O autor deixou as pegadas nas palavras que escreveu, mas é quem lê que deve ressignificá-las. Assim, esta carta-diálogo é a agulha, é a linha e é o próprio ato de tecer, ou seja, é o resultado do impacto que a leitura paradoxal de Ô Fim do Cem, Fim... produziu em mim. As palavras do livro revelam desejos e movimentos mentais. É um pensamento oceânico, plugado no cosmo, desbloqueado e fluido. Deve ser por isso que esse fim não tem fim; porque é pura expansão da mente de quem escreveu. Expansão que provoca expansão na mente de quem lê. Sem fim é o movimento de tecer significados e sentidos na eterna evocação da palavra escrita, lida, falada, escutada, ampliada pelas antenas parabólicas daquele que sabe que “Cada um tem uma baleia na ponta da linga”. A palavra do Mestre revela a necessidade humana de conhecer, ao mesmo tempo em que deixa nu um saber não domesticado. Sua palavra, organizada com regra ortográfica e taxonomia singulares, mostra a gramática de um conhecimento que flui do inconsciente coletivo e do imaginário social. Um conhecimento entusiasmado. Diriam os gregos, um conhecimento cheio de deus, no sentido de que está repleto de desejo, de transcendência e de mistério por não se saber com certeza sua procedência e seu destino. Um conhecimento próprio de poetas, profetas e enamorados. Um conhecimento endaimoniado – com a presença do daimon grego, o demiurgo que enlaça significados e que serve de ponte entre os humanos e a sabedoria. Platão afirma, no seu diálogo O Banquete, que a sabedoria de seu mestre Sócrates provinha de um daimon. Essa força que guiava seus ensinamentos elevados muito além de seu próprio intelecto e vontade. Já no diálogo Timeu, Platão afirma que dentro de cada um de nós habita essa força, que é a faculdade suprema de fazer com que nosso ânimo esteja voltado para as coisas elevadas. Assim, Pedro Paulo permite que seu daimon fale através dele. Creio que, ao ler o Mestre, recupera-se em nós esse entusiasmo por percebermos nele esse desejo elevado de deixar um legado de conhecimento para os demais humanos. A palavra-remédio do Mestre é enciclopédica, é global, universal. Palavras enciclopédicas que falam de política, pedagogia, teologia, geografia, astronomia, física, astrofísica, tecnologia, engenharia, biologia, química, história, medicina, gramática, literatura, matemática. Essa palavra é, ao mesmo tempo, mito e logos, porque é ciência, é arte, é filosofia, é religião, é sabedoria popular. Com suas palavras, o autor revela a inteligência coletiva, demonstra esse cérebro social do qual se fala contemporaneamente, cérebro que processa o conhecimento humano, ao mesmo tempo, em Salinas e em territórios situados além dessa geografia. Pedro Paulo é um infinito particular, um clássico, uma voz de um que é voz de muitos. Voz reveladora da interconectividade, da interdisciplinaridade, da interação humana. Voz de palavras revisitadas como metamorfose, pantagruelismo, alfa e ômega... Voz-hipertexto que abre muitas possibilidades de interpretação. Esta carta expressa a minha leitura criativa da obra. Para criar é necessário dominar um conhecimento específico, ter informações de um conhecimento geral e assumir a ignorância de uma variedade ampla do saber humano. Assim li o Mestre dos Mestres: situada na minha trincheira de conhecimento específico, mas também no imenso oceano da minha ignorância. Por essa razão pude aprender e brincar epistemologicamente com esse notável Mestre autodidata com desejos didáticos. Por isso, um convite: leiam, a seguir, as reflexões sobre as leituras que fiz. Porém, sejam bem-vindas todas as demais leituras, porque nosso Mestre dos Mestres concebeu uma obra na qual o conhecimento é arte!

LEITURA SOCIAL: “EU ALMUÇANDO, TODO MUNDO ALMUÇOU.” “BIXO COMILÃO DE CARNE; (...) DISGRAÇA DE POBRE.”

Embora para o Mestre, o bicho comilão de carne seja a baleia, o jacaré, o leão e a onça, não resisti a pensar analogamente quando li a frase acima. Percebendo toda a sensibilidade social que o livro mostra, pensei que muitos são os tipos de “bixo comilão de carne”, a injustiça social é um deles. O que me fez pensar nisso foi constatar a indignação com que ele fala dos mortos por polifagia: “ a pessoua, ter vontade de comer (...) e não tem uma nica para alimentar”. Esse pensamento também adveio de averiguar como ele lamenta a fome infantil, como repudia as dores da desigualdade social que se revelam nos excluídos: os índios, as prostitutas e aqueles que trabalham a terra. O Mestre pergunta: “Como pode um país viver cem dinheiro; e cem fruticultura?” Ele questiona as políticas públicas, a política partidária, o Senado, o exercício da própria cidadania. Mostra a beleza do conhecimento misturada com a dor da injustiça social e o desejo de compartilhar o bem comum. Clama pela criteriologia – o pensamento com critérios – ao mesmo tempo em que demonstra uma aguda sensibilidade de captar os problemas reais de seu povo. Sua obra é uma ética político-estética que me atrevo a chamar de reveladora de uma cidadania criativa. Pedro Paulo é proativo, quer fazer parte das soluções e coloca sua capacidade de pensar a esse serviço. No seu livro recorda que vivemos no mesmo tempo e no mesmo espaço, por isso necessitamos encontrar novas formas de conviver e de coabitar. Formas justas, mais dignas, mais humanas que sirvam ao bem comum. De acordo com o filósofo José Antonio Marina, a maneira mais inteligente de ser inteligente é eleger a dignidade humana como projeto supremo. E é o mesmo filósofo que fala do conceito de Felicidade Pública, que não é um sentimento pessoal, mas sim algo objetivo, um marco digno para viver que precisa ser construído por todos. Para mim, a poética-política do Pedro Paulo está comprometida com a felicidade pública do seu povo, porque sua obra clama pela dignidade da gente de seu entorno. Um exemplo disso pode ser percebido quando afirma: “O alfabéto dos indios: é um arvoredo sêco cem folhagem”. LEITURA TRANSCENDENTE: “GÓDE, TUPÃ E JEOVÁ - O INDIVIVO PODE FALAR O NOME DE DEUS NA LIGUA QUE QUIZER. ”

Ainda que afirme ser o homem “que sabe de onde vem e para onde vai”, a necessidade de transcendência – o religare – pode ser percebida no texto do Paulo Marques em distintos momentos e de diferentes maneiras. Revelador desse maravilhoso e inquietante sincretismo religioso brasileiro, o livro assume que a natureza é Deus e que Deus é a natureza. Entre uma mitologia de criação unida a uma mitologia escatológica, narra o início da oca do mundo anunciada em Ô Fim do Cem, Fim...

Anjos, Xamãns e o Turco Messiânico se unem no mesmo texto no qual se afirma que “Deus foi germinado semilhante a lêsma germino casco depois a lêsma”. Pedro Paulo, por meio de seu verbo, realiza uma ação que transforma e outorga continuidade ao mundo, quando reconcilia o ser humano com sua necessidade de explicar e nomear o mistério. Por isso produz assombro e alumbramento, no sentido em que os afirmava o filósofo alemão Heidegger, porque se distancia por meio da palavra daquilo que pretende aproximar com a própria palavra.

Mito, astronomia, teologia, essa união revela a cosmogonia do autor.

LEITURA MÍTICA “A ÔCA DO FIM DO SEM FIM JÁ EXISTIA”

Entre o mito e os arquétipos que explicam a origem está uma das inquietudes de Ô Fim do Cem, Fim... Original a obra do Mestre; como dizia Gaudí, originalidade é voltar à origem. E é isso que Paulo faz: volta à origem e tenta explicá-la. Tentativa compartilhada por muitos na história do conhecimento humano, como, por exemplo, os filósofos pré-socráticos. Interessados em entender a arché, esses filósofos expressavam, na sua antiga Grécia, uma necessidade de entender o mundo que é muito similar à de Pedro Paulo, em sua atual e querida Salinas. O autor intui que o já se sabia... E, quando afirma o paralelismo entre o teto e o chão, coincide com os alquimistas, que assumem a relação similar entre o que está embaixo (Terra) e o que está em cima (Céu).

LEITURA METACOGNITIVA: “OLHANDO E MEDITANDO DENTRO DA MINHA MÃO... ” O CIENTISTA “ VÊ PELO OLHO DO PENSAMENTO.”

O Mestre é metacognitivo. Ele pensa sobre seu pensamento e tenta revelar para si mesmo como vê o seu pensar em ação. Por um lado, trata-se de um pensamento divergente, desbloqueado e que vaga pelo desejo de conhecer e nomear o mistério do mundo. Por outro lado, é um pensamento convergente que quer sistematizar sua didática, que quer ensinar o que se revelou por meio dele. É quase como o caminho do meio que tanto Aristóteles como Confúcio trataram de propagar em suas diferentes geografias e momentos históricos. O livro revela, enfim, a transcendência humana pelo pensamento, a busca do entendimento como uma ferramenta de mediação entre o humano e seus mistérios que, revelados ou não, insistem em existir.

LEITURA INVENTIVA: “ O CARRAPATO FAZ CINCO METAMORFOSE ”

Pedro Paulo mostra toda a sua capacidade criativa e inovadora quando compartilha seus inventos: os vários tipos de forno, de barro, automático e produtivo, para fazer mais fácil, para processar o lixo; a bateria hidrelétrica; a bateria atômica; o satélite para acabar com a noite; o chuveiro de água morna com lampião; a camisa para não morrer afogado; a cama da viração para circular o sangue; o moto-contínuo do cientista; o anticorisco contra raios; o artefato para alimentar o gado; a marreta funil para distinguir formiga cabeçuda; a cadeira para quem trabalha no escritório; o circuito hidrelétrico esterilizado. Seus inventos revelam a preocupação pragmática com problemas concretos do seu contexto e a busca de soluções criativas para resolver esses problemas. Revelam também a amplitude e a originalidade do seu pensamento. Ainda que ele mesmo afirme “...quem faz artesanato de imaginação” morre sendo destruído pelo engano, ele usa sua capacidade criativa para o que entende ser necessidade concreta da vida que acontece no seu entorno.

Essa criatividade também se revela nos mapas que faz para mostrar suas idéias, os quais vão além de mera ilustração ou esquemas para favorecer o entendimento; para mim são pensamentos bordados a mão. E é todo um prazer admirá-los!

LEITURA LITERÁRIA: “NÓS, É QUE AMANHECEMOS: A NOITE E O DIA VÃO ATRAS DE NÓS."

Edgar Morin, pensador multidisciplinar que nasceu na França e que exerce uma ampla influência no pensamento ocidental, comenta que podemos habitar o mundo prosaica ou poeticamente. Quando leio o Pedro Paulo, entendo que ele habita o mundo poeticamente e essa maneira de estar perpassa cada entrelinha de sua obra. A poesia, obviamente, faz-se mais evidente nas histórias: “Festa nupsial do fabricante de almanaque”; “Cabral sercou duas fazendas”; “A lama dos protozoários”; “Como Adão e Eva foi germinado”; “Antes de germinar, Deus: já isistia inférno”; “Cabral tinham a limgua pregada”; “Casamento não é sórte; é, escolhido”. Assim, Ô Fim do Cem, Fim... veio com histórias contadas poeticamente, as quais me fizeram amanhecer para que o dia e a noite me perseguissem durante todo o tempo da leitura.

A LEITURA E A ESCRITA COMO VIAGEM Literal e metaforicamente estive viajando com as palavras do Mestre dos Mestres. Conheci sua obra em Belo Horizonte, Minas Gerais, no início de 2011. Fiquei fascinada com o que vi e me senti honrada com o convite de fazer esse diálogo com a obra. Do Brasil fui para o México e de lá para a Espanha, sempre acompanhada pelo Ô Fim do Cem, Fim... E, ao longo de 2011, em todas as minhas viagens levei o livro de Pedro Paulo na bagagem. Viajei com suas palavras, suas imagens e suas idéias por distintos campos do pensamento humano, enquanto viajava pela geografia do mundo, pelo mundo do meu trabalho. Passei por distintas cidades espanholas, lendo e relendo o livro de Pedro Paulo, o tempo todo intrigada com o desvelamento epistemológico que me produzia essa leitura. E, numa ilha, chamada Palma de Mallorca, comecei esta carta que foi sendo escrita e reescrita em distintas cidades da Espanha e da América Latina. Foi lindo constatar a universalidade de Pedro Paulo, enquanto lia o seu livro ao mesmo tempo em que lia esse mundo pelo qual passava; porque vi a conexão entre suas palavras e as palavras do mundo. Ô Fim do Cem, Fim... me levava pelas paisagens de diversas áreas do conhecimento, ao mesmo tempo em que me devolvia para minhas entranhas brasileiras. Sua simbologia montou na minha mente uma cartografia da inquietude humana frente ao mistério da vida. Uma inquietude que é, ao mesmo tempo, particular e universal. É a inquietude do autor, é a minha inquietude como leitora e é a inquietude de muitos dos interlocutores com quem dialogo nesta carta. Assim, confesso que ler esse livro e escrever esta carta foi uma viagem pela geografia do pensamento humano. Uma viagem pela qual estou agradecida. Obrigada, Mestre! Obrigada, Mestre dos Mestres! Que essa poética-didática siga com sua missão de ser LUZ DO MUNDO! Que venham mais olhares e mais diálogos. Já que o Mestre nos disse que “todos os idiomas são frágiles; e pobres”, devemos nós seguir tecendo o sentido dessa fragilidade e dessa força civilizatória que é o intercâmbio da palavra humana e humanizada. Com ternura e alegria, Angélica Sátiro


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