Porteira da divisa
Este não é um trabalho técnico, dentro de esquemas rígidos e acadêmicos. É sim um trabalho pautado na simplicidade e espontaneidade, tal qual a vida de nossa gente simples interiorana. Simples como o nascer e o pôr do sol que se fazem naturalmente, a cada dia, nas grotas e rincões de nossa Minas Gerais. Minas de alma transparente como a água no nascedouro! Desenvolveu-se este trabalho com a observação in loco, apenas no observar e ouvir. Pena que tudo não seja exatamente contado por eles na sua deliciosa linguagem oral. A linguagem é, então, recriada pela autora. Isso devido à índole desconfiada do mineiro, que não permitiria o uso de recursos mais modernos como um gravador, o que bloquearia toda a espontaneidade, impedindo o jorro da alma cabocla. A autora procurou ser autêntica, o mais possível, não fugindo muito da linguagem e ambientação. Não foi difícil, pois ela mesma é fruto desse ambiente onde viveu doze anos de sua infância, profundamente integrada à natureza, ao ambiente provinciano onde nasceu – Carmésia, cidade próxima de Ferros e Santa Maria de Itabira, em Minas Gerais. Passava suas férias na fazenda Cachoeira Alegre, em Santa Rita do Rio do Peixe. E não perdeu essa convivência depois de adulta, pois as raízes da terra continuam chamando-a ao seu convívio. A enorme força telúrica que emana de todo um arquivo de infância foi o que inspirou a realização deste trabalho. Isso somado à grande preocupação de ajudar a preservar nossos valores culturais. E não houve só intuição nesse sentido, mas bastante intenção, pois nossas raízes estão na terra. Raízes fortes na tintura afro-indígena, ligadas a colonizadores portugueses.
Sabe-se que um país somente se torna soberano quando se preservam e cultivam suas origens, seus verdadeiros valores culturais. Aí está toda a autonomia de um povo, pois uma nação sem raízes é qual palmeira balançada em suas bases: perde a altivez, a soberania. Nossos costumes, nossa cultura popular, principalmente interioranos, são de uma riqueza e variedade inesgotáveis! Aqui aparece apenas uma amostragem. É a nossa pequena parcela de contribuição, seguindo outros. Que venham mais muitos outros pesquisadores relatar suas experiências e vivências! Felizmente, isso vem acontecendo, especialmente na área da literatura e da música. Que nos unamos com o mesmo e grande objetivo: uma força que dará, um dia, resultados contra a crescente aculturação do povo brasileiro, o que ocorreu, infelizmente, com o nosso índio. Sem dúvida que, principalmente nos últimos anos, a nossa gente não tem tido condições de fazer sua própria cultura, sua própria história. Se buscarmos nas diferentes fontes universais, encontraremos personalidades preocupadas com as raízes de cada povo. Não só agora, mas há milênios, os sábios pensavam que o equilíbrio do ser humano está sempre em não se afastar de suas raízes. Voltando bem atrás, na filosofia taoísta, temos a sabedoria de Lao-Tsé: “Os múltiplos seres do mundo Voltarão cada um a sua raiz. Voltar à raiz é ficar sereno Ficar sereno é reencontrar o destino Reencontrar o destino é a constante Alcançar a constante é a iluminação.” É urgente a volta a esses valores mais humanos e naturais, menosprezados a partir de uma sociedade consumista. Consumismo que roubou do homem a sua profunda essência de ser humano.
Outra personalidade, Lévi-Strauss, etnólogo francês, estudioso das civilizações primitivas, afirma: “O mundo contemporâneo perdeu a fé em seus próprios valores e nenhuma civilização pode desenvolver-se se não possui valores culturais aos quais se agarrar profundamente”. (Revista Veja, 21/12/83) Bem próximo, com muito orgulho, temos essa busca profunda em Casa-grande e senzala, do nosso eminente sociólogo e ser humano Gilberto Freyre, que sempre deixou evidente: “Nossas raízes são importantíssimas”. E não se esquece de salientar o valor do cotidiano, das coisas simples, reais e naturais. Bastante razão tem ele, quando se ressente de que sua obra-prima, Casa-grande e senzala, não seja estudada mais seriamente nas universidades brasileiras, o que já vem sendo feito em algumas universidades europeias, onde ela é colocada dentro dos currículos. Perguntamos: Será sempre assim? Por que esperarmos que apenas personalidades de fora venham divulgar a nossa cultura, como Debret e tantos outros, artistas e historiadores sensíveis que se encantaram com a nossa exuberante paisagem tropical, nossos ricos costumes e nossa inegável potencialidade? Infelizmente, o maior problema é a dificuldade que temos em ser autênticos e simples, valorizar as coisas simples, dedicar-nos a nossa gente simples. Compreende-se que, numa época de exagerado avanço técnico, do modernismo, da sofisticação tecnológica, é preciso ter coragem para falar de coisas simples. É preciso, no entanto, convencermo-nos de que, na simplicidade, não há demérito. Jesus e Gandhi deram o exemplo e deixaram verdades belíssimas e eternas. Este trabalho é também um forte apelo à consciência ecológica. Mostrando ao leitor as belezas e potencialidades do campo, estamos pressupondo que quem experimenta “o Bom e o Belo” vai lutar por sua permanência. Mas que fique bem claro: não pretendemos, aqui, o bucolismo alienante dos clássicos, num mundo em que a palavra de ordem é “participar” e não “alienar”. O livro é dividido em duas partes:
Textos narrados em 1ª pessoa. A maior parte das histórias foi ouvida até altas horas da noite, à beira do fogão a lenha, deliciando-se com mingau com queijo, broinhas e biscoitos de polvilho, canecas de café, afugentando, assim, o frio das noites de inverno mineiro. Nas histórias narradas, não há intenção de um desfecho significativo. O que importa é o desenrolar da narrativa que mostra o universo linguístico e as situações típicas do ambiente. A crônica “Porteira da divisa”, por exemplo, introduz a autora e o leitor no mundo de reminiscências e vivências da realidade interiorana.
Textos narrados em 3ª pessoa. Textos, na maior parte, aproveitados de um diário da autora, que já vem sendo feito há alguns anos.
A divisão foi realizada apenas para efeito de facilitar o trabalho e suavizar a leitura. Não houve qualquer preocupação didática, pois tudo revela mesmo os usos e costumes do mineiro. É uma mistura, uma coletânea informal, sem dúvida; o conjunto de momentos intensamente vividos. Repito: não obedece a nenhuma forma acadêmica. Talvez por uma repulsa à grande “forma” em que se meteu a humanidade robotizada, propensa a modismos que lhe roubam todo o poder de criatividade. Finalmente, também com o objetivo de sensibilização, em todo o tempo, a autora seguiu sua intuição, sua própria meta, sem se preocupar com a seleção e determinação rígida de gênero literário. Quanto a isso, para a nossa tranquilidade, temos em mente a observação de Carl Gustav Jung, na obra Memórias, sonhos, reflexões: “Há de tornar- -se neurótico aquele que quiser seguir sua própria meta e, ao mesmo tempo, adaptar-se à coletividade”. Descrever, ainda, a realidade do interior nada tem de diferente. É repetição, quase tudo igual, talvez um vasto lugar-comum na doce rotina do mineiro. Mas o que importa realmente, a nosso ver, são a variedade e a intensidade de sentimentos que marcam e colorem a experiência de cada um, jamais repetida por outro. E disto temos certeza: existe, neste trabalho, um grande sentimento e muita emoção em cada pedaço. Estamos ainda certos de que, principalmente, os jovens vão amar um pouco mais os nossos valores, depois do contato com este livro. É o que importa! Assim, com carinho, a autora entrega ao leitor o julgamento deste trabalho, agradecendo a todos que, direta ou indiretamente, colaboraram na sua realização. Em especial, à revisora e professora de Comunicação e Expressão, Maria Ramos da Fonseca, e a Sebastião de Aquino Perpétuo, advogado e contador; a seus pais, Joaquim Júlio da Fonseca e Maria Mateus de Andrade; a seus sogros, Altivo José de Aquino e Geraldina Coelho Perpétuo; e, por fim, a José Mateus de Andrade Sobrinho e Alvina Monteiro de Andrade, Raimundo Júlio Mateus e Joaquina Cândida da Fonseca, seus avós, por terem despertado nela o amor por suas raízes.