ROSAS PARA TODAS
Conheci Pedro através de Marina, da Editora Benvinda, que me apresentou esse livro-objeto Rosas para todas – agalma pelo qual de imediato me encantei. Não conhecia Pedro, nem Dulce, sua mãe, mas logo descobri que havia ali um desejo não anônimo como causa de uma invenção: a escrita de Pedro, atravessada pelo amor da mãe e emoldurada pela poesia de outro Rosa, com a qual a edição relacionou aos desenhos e escritos elaborados por Pedro para dizer de suas perguntas sobre o seu ser e o seu porque. A rosa, diz Angelus Silesius, não tem porque, mas para Pedro ofertar uma rosa é ofertar o seu amor, e faz parte de seu desejo de construir laços.
É preciso primeiro notar que as rosas são para todas, e não todos, como um vislumbre da caligrafia de Pedro poderia fazer pensar. Ele gosta, desde cedo, das meninas, que ocupam um grande espaço em seus desenhos e em seu livro: a prima, as amigas, a terapeuta, a dentista. A série começa, como podemos supor, por Dulce, essa mãe doce que ele acompanha, desde menino, em suas atividades, extraindo, do seu trabalho em um abrigo para mulheres, essa caneta-rosa do rei Pedro, que inaugura sua escrita: Dulce havia confeccionado um cesto cheio delas para dar como lembrança no aniversário do abrigo, e Pedro trouxe sua lembrança para casa, fazendo dela sua caneta especial. O rei, originalmente, era aquele que compôs a música que Pedro escutava, desde pequeno, sua mãe cantar: “como é grande, o meu amor, por você”...
Dulce conta que escrever, para Pedro, não foi coisa fácil. Aos 5 anos de idade, ele era muito inquieto – o que chamam hoje de hiperativo – e lhe disseram que seria difícil, senão impossível, alfabetizá-lo. Se lhe davam uma caneta, ele riscava a folha com tamanha força que perfurava várias folhas embaixo. Esse massacre da folha até fazer buracos era equivalente ao trajeto aflito de seu corpo, tentativa de eliminar um excesso que ele não sabia metabolizar. Os psicopedagogos tentaram fazê-lo escrever colocando-lhe, no antebraço, uma braçadeira de couro atravessada por ferros, que teriam a função de fixar seu braço, imobilizá-lo, para que ele pudesse escrever. Dulce logo descartou esse instrumento, que qualifica de medieval, e passou a trabalhar com ele usando argila, ao contrário, maleável, que o acalmava. Era professora de artes e logo o tomou como aluno. Arranjou para ele uma máquina de datilografia manual e ele adorava teclar e ver as letras aparecerem, carimbadas na folha de papel, formando seu nome. Assim ele foi aprendendo as letras e formando combinações, que viravam palavras. Depois ela o fazia copiar o que tinha escrito com um lápis grosso, em uma folha de papel.
Teclar na máquina fortalecia sua musculatura e firmava seus pulsos, enquanto ela tratava a agitação de seu corpo: caminhava com ele pela escola e depois pedia que ele desenhasse, numa grande folha de papel, seu percurso. Com giz colorido ele fazia esse mapa, transformando o excesso em trajeto, escrita. Dulce foi estudar pedagogia para aprender como alfabetizar seu filho, mas nessa época, ela diz, ele já lia e escrevia como os colegas de sua idade. É essa letrinha do tempo da alfabetização que ele conserva até hoje, mostrando-nos, em seu livro, como se faz da excitação do corpo fixação pela letra, invenção, poesia. Quando escreve seus textos sempre usa a caneta-rosa como ponte entre a mão e o papel. Mas a rosa é também flor... que ele adora ofertar às moças.
A vida escolar de Pedro não foi simples. Seus limites o afastavam das pessoas e era difícil para ele ficar na sala de aula. Mas Dulce sempre deu um jeito: colocou-o em uma escola especial, onde ele fez amigos e concluiu o ensino médio. Ela o estimula a participar de suas atividades com as artes, a escrever, a trabalhar. Ele aprende muito com filmes e discute todo tipo de assunto. É um artista no computador, adora jogar videogame e já criou um programa no youtube, fazendo bom uso da voz. Em seu livro, Pedro se nomeia “brincante oculto” e considera que tem uma forma artista de ver as coisas – sempre de um jeito inusitado. Pedro tem o dom de observar, de criar seu personagem, ele quer saber quem é: “quero ser eu mesmo”, repete.
Mas pergunta: “o que eu quero ser?” Se a vida é como um filme, nem tudo é um mar de flores, ele diz. Como a “preguiça” não lhe faz bem, ele se esforça para sair de casa. Às vezes para de escrever, interrompido por sua “zona de conforto”, mas quer continuar, pés na estrada, coração de caneta na mão. É o que desenha no livro: um coração de livro em punho, sua arma. Milton Nascimento e seu coração de estudante não podem faltar. Pés na estrada para o infinito, desenha a caneta, o violão, a música. O livro lhe organiza a vida. Tropeçar ajuda a caminhar. Durante algum tempo trabalhou no Super Nosso - desenha seu crachá e alguns super-heróis, mas esclarece, com fina ironia: “Não sou James Bond”.
Qual caminho escolher? Da paz, da amizade, do amor? Do submundo? Na árvore da vida, trata-se de escrever, cada dia, uma ideia, construindo seu ser com a caneta-rosa fabricada pela mãe do rei Pedro. “A dívida de todo homem é a morte”, mas “a estrada da vida é longa”, diz Pedro.
Pedro e Dulce nos ensinam que os cuidados de uma mãe que trazem a marca de um interesse particularizado, portador do seu desejo, indicam um caminho para a vida de seu filho. Dulce aponta formas de tratamento que passam longe de um treinamento comportamental, porque estão atentas à singularidade e às questões trazidas por Pedro, que inventa com sua mãe, sua família e agora com Marina Acúrcio, da Editora Benvinda, um caminho à sua medida. Rosas para todas há de germinar como semente de uma série que Pedro poderá, desde então, cultivar.
Elisa Alvarenga
Médica e mestra em Filosofia - UFMG, doutora em Psicanálise - Universite de Paris VIII. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise.