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Chico Buarque ganha prêmio Camões e autor Benvinda presta homenagem.

Para prestar nossa homenagem a Chico Buarque, que venceu a

31ª edição do Prêmio Camões, um dos maiores reconhecimentos da literatura de língua portuguesa, eu e minha editora Marina Acúrcio convidar você a (re) ler o conto O primeiro dia sem ele.

(OS HOMENS A CAVALO - Benvinda Editora, 2014).

O conto é um tributo a quem considero ser nosso maior artista de todos os tempos.

Álvaro Nascimento

PRIMEIRO DIA SEM ELE

Preciso ir logo te dizendo que este primeiro dia sem você é, de longe, o mais triste de todos os tempos. Como nunca, hoje toda a sua gente anda falando de lado e olhando pro chão, viu? E é inútil dormir que a dor não passa.

João e Maria amanheceram chorando abraçadinhos para dividir a imensa tristeza. O menino diz que nunca mais quer ser o herói, enfrentar os batalhões, os alemães e seus canhões. Sem você aqui, ele diz que a brincadeira não tem graça nenhuma. Até ordenou que seu cavalo que só falava inglês faça votos de eterno silêncio.

Já Maria, coitadinha, está um trapo de gente. Guardou no fundo da gaveta, dizendo que é para sempre, o vestido da noiva do cowboy. E que nunca mais quer ser princesa e, menos ainda, andar nua pelo seu país. Diz que é porque você não está mais aqui para admirá-la. Sabe esses dias em que a gente se sente como quem partiu ou morreu, como se uma coisa terrível fizesse a gente estancar de repente, querendo que alguém leve nosso destino pra lá?

Meu caro amigo, como foi difícil hoje acordar calado, pois não há quem não chore alto por você. Já de manhã, ninguém conseguiu fazer tudo sempre igual. A moça triste que vivia calada e sorriu, não só se calou de novo como decidiu cerrar os olhos e chorar baixinho sua cachoeira de tristeza. E foram tantas as águas que rolaram! A Morena de Angola, sua camarada do MPLA, quando soube, ficou irada contra o mundo e arrancou para sempre o chocalho amarrado na canela. Nunca mais saberemos se é ela que mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela. A mulher que acordava às seis horas da manhã, sorrindo um sorriso pontual e beijando com boca de hortelã, só suspira pelos cantos.

Ao saber da notícia, o operário da construção nunca teve os olhos tão embotados de cimento e lágrima. Chegou cedo e subiu a construção como se fosse máquina, mas, desta vez, para esconder tamanha tristeza. Já o outro, no caminho da oficina, com um bar em cada esquina, preferiu enterrar as lágrimas na cachaça de graça que a gente tem que engolir. Para ele, nunca foi tão forte a sensação de que, ao contrário do que você sempre disse, talvez o mundo seja pequeno e a vida seja mesmo um fato consumado.

Logo cedo, a Geni e o tão temido e poderoso comandante – depois de muita sujeira, em que ele de novo se lambuzou a noite inteira – souberam, pelo rádio do zepelim, da tristeza geral do mundo. E quando nem bem amanhecia, ele decidiu não partir na nuvem fria com seu zepelim prateado. Geni não se virou de lado e cada um permaneceu calado, abraçado, de rosto colado, tentando manter um ao outro consolado.

O mundo acordou sem que ninguém mais pergunte o que será, que será, que anda nas cabeças, anda nas bocas, pois não há quem não saiba que todos os avisos não vão evitar o que não tem mais conserto.

Nas ruas, os homens se miram olhos nos olhos e até tentam prosseguir. Mas não há uma só mulher que não chore. Nenhumazinha. E que não jure te carregar para sempre no corpo, seja feito tatuagem seja como cicatriz. Só assim, dizem elas, têm coragem pra seguir viagem quando a noite vem. Para diminuírem tanta dor, se miram naquelas de Atenas e, enquanto choram, tecem longos bordados, prometem mil quarentenas, se encolhem, se conformam e se recolhem às suas novenas, serenas.

Os escafandristas que explorarão as casas e os quartos de um Rio submerso, junto com os sábios que decifrarão o eco de antigas palavras, fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos dessa estranha civilização, fazem de tudo para acalmar os mais desesperados. Dizem que, amanhã, vai ser outro dia, e que, apesar de você ausente, o galo vai insistir em cantar, que vai ter água nova brotando e que devemos seguir amando sem parar.

Inútil. Hoje o guri que já nasceu com cara de fome, filho da mãe que não tinha nem nome pra lhe dar, ao saber da notícia, pensou que agora mesmo era que ele não chegava lá. E, na sua meninice, horas antes de ser estampado na manchete, retrato com venda nos olhos, legenda e as iniciais, ao ver todo mundo chorando, disse que definitivamente não entende essa gente, seu moço, fazendo alvoroço demais. Sorte dele não saber quem o inventou para o mundo. Sofre menos.

Para apaziguar meu coração e o de toda a gente, só resta imaginar que, depois de te perder, te encontro com certeza, talvez no tempo da delicadeza, conformado em te seguir aonde quer que você vá. E nesse outro tempo, ao te encontrar, não diremos nada; pois nada aconteceu. E, novamente, seguiremos como encantados ao lado teu. Soube agora que a Ana de Amsterdam, de tanta tristeza, meteu-se de vez no oceano, arriscando para sempre cada braçada. Forjada em tanta brasa dos brutos na coxa, desapareceu com os dentes rangendo e com os olhos enxutos, mergulhando fundo na esperança de um outro mar.

Meu caro amigo, me perdoe, por favor, sei muito bem que você avisou que a saudade é o pior tormento, pior do que o esquecimento, pior do que se entrevar. Mas precisava querer provar isso desse jeito, levando um pedaço de mim com você? Fora os sons dos lamentos espalhados nas cidades, saiba que, aqui na terra, hoje ninguém tá jogando futebol, não tem muito samba, nem rock’n’roll. Só choro. Muito choro. A sensação, neste dia, é a de que vivemos uma página infeliz da nossa história, uma passagem que nunca irá se desbotar na memória mesmo das nossas novas gerações. Todos rogam para que Deus venha olhar e ver de perto a cidade a chorar tanto sofrimento antes mesmo de o dia clarear.

Agora você está aí, ao lado do seu maestro soberano, o Antônio Brasileiro. E nós? Quem vai cobrir de redondilhas a nossa toada pra que a gente consiga seguir nossa jornada? Quem vai limpar nossa vista enevoada para que, nessas tortuosas trilhas, consigamos ver inferno e maravilhas? Lá no fundo, você sempre soube que era o favorito das cabrochas dessa ala. Agora, tudo bem, a festa continua, mas a gente nem se fala; cada samba sai procurando você e cada paralelepípedo da velha cidade vai se arrepiar ao lembrar que aqui passaram seus sambas imortais, na mesma pedra onde sangraram pelos pés nossos ancestrais.

Saiba que a sua Beatriz está inconsolável. Trancou-se, para sempre, no arranha-céu onde as paredes são feitas de giz e entregou-se ao choro no quarto de hotel, lamentando que o para sempre seja sempre por um triz. Diz que, sem você, jamais saberá se é moça, se é triste, se é o contrário ou se é pintura o rosto da atriz. E chora mais alto quando pensa que já não dança no sétimo céu, pois não acredita que é outro país, que só decora o seu papel e nunca mais vai poder entrar na sua vida.

Já Iolanda, romântica e sem procurar a justa forma, só chora e repete te amo, te amo, eternamente te amo. E como se fosse possível, ela jura que, se você voltar, te fará as vontades, dirá meias verdades, sempre à meia-luz. E que te fará, vaidoso, supor que és o maior. Bárbara tem hora que não acredita, tem hora que chora e tem hora que diz que quer morrer, te seguir aonde quer que você vá. Para ela, nunca é tarde, nunca é demais. E chorando pede, implora: meu amor, vem me buscar.

Contaram-me que, por uma gota-d’água, salvaram a Teresinha de se matar. Você sabe que, antes mesmo do primeiro que chegou como quem vem do florista, do segundo que chegou como quem chega do bar e, apesar do terceiro que chegou como quem chega do nada, mas que se instalou feito posseiro dentro do seu coração, o preferido mesmo era você. Deitada na esteira, onde dia ímpar é chocolate, dia par vive de brisa, hoje ela acordou falando baixinho para si mesma que nunca mais romance, nunca mais cinema, nunca mais drinque no dancing, nunca mais cheese, nunca uma espelunca, uma rosa nunca, nunca mais feliz.

Dia triste, toda hora dá uma vontade danada na gente de dizer acorda amor, eu tive um pesadelo agora. Mas não é pesadelo nada... que aflição. E a gente sabe que pode demorar uns meses, um ano e, você não vindo, o jeito vai ser colocar a roupa de domingo. Mas vai ser impossível te esquecer. Isso nunca. Trocando em miúdos, guardaremos de você as sombras de tudo que fomos nós, as nossas melhores lembranças e aquela esperança de tudo se ajeitar. Tem gente que amanheceu com a sensação de ter uma pedra no peito. E a dor é tanta que só fazendo promessa até pra Oxumaré de subir a pé o Redentor, para fazer estancar tanta dor. A pobre da Rita é uma que está morta de arrependimento. Depois de te levar quase tudo, jura que, se você voltar, devolve seu sorriso, seu assunto, o que te é de direito e tudo que te arrancou do peito. E tem mais. Devolve seu retrato, seu trapo, seu prato, a imagem de São Francisco e o seu disco de Noel. E ainda pede desculpa pelo papel. Devolve seus planos, seus pobres enganos, os seus vinte anos e o seu coração. Diz que nunca mais vai deixar mudo seu violão. E jura que não vai mais continuar te adorando pelo avesso.

E já que eu estou te falando das mulheres que você pôs no mundo, saiba que vi Carolina. Está com os olhos ainda mais fundos. Guarda tanta dor que mais parece a dor de todo esse mundo. Eu já expliquei que não vai dar, que seu pranto não vai nada ajudar, mas ela não se convence. Sorrindo, mostrei a ela a janela, olha que lindo... mas Carolina não viu.

Prefere manter os olhos tristes por um amor que já não existe. Até a Angélica, em quem você, ateu contumaz, fez, como o melhor dos cambonos, incorporar o espírito da Zuzu, parou de cantar seu eterno estribilho e de querer embalar o filho que mora na escuridão do mar. A grande estilista saiu a procurar tua sombra a se multiplicar. E nas vitrines te vendo passar, na galeria, a cada clarão, era um dia depois de outro dia. Você passava em exposição, sem ver teu vigia, catando a poesia, que entornas no chão. A Iracema que voou para a América hoje chorava muito enquanto lavava chão numa casa de chá. Não quer sair mais ao luar com o mímico, nem estudar canto lírico. Pensa com seus botões que, quando tiver saudades do Ceará, afoita, não terá mais para quem ligar a cobrar. Se nega a acreditar em tanta tristeza e me disse: vai e diz, diz assim que eu chorei, que eu morri de arrependimento e que o meu desalento já não tem mais fim. Até o subúrbio entristeceu por você.

Hoje muito cedo, ao deixarem suas casas simples com cadeiras na calçada, e vindos de trem de algum lugar, estão todos em silêncio. Como nunca, eles agora acreditam que não têm mesmo com quem contar. É gente humilde e com muita vontade de chorar. Imagina que até o homem mais forte do planeta, tórax de superman, está com os olhos rasos d´água. Vaga pelas esquinas dizendo que agora virou gente normal, que nunca mais vai dar nó em paralela nem almoçar rolimã. Quer abrir seu coração e receber seu poeta. E diz que, se isso não acontecer, arromba a janela. Vagando pela cidade silenciosa e triste, eu quis ver alguma pequena alegria e fui à Lapa. Lá, eu soube que o malandro pra valer, não espalha, sacou da navalha e queria, como um louco, seguir viagem com você. Impedido, o desesperado quis se jogar debaixo do trem da Central.

Só se convenceu a seguir por aqui ao pensar que agora tem mulher e filho e tralha e tal. Uma sabiá cantou triste já de manhã, avisando que quer voltar para o seu lugar, para deitar à sombra de uma palmeira que já não há, colher a flor que já não dá. Hoje, cara, todo mundo sonha um sonho impossível. O de poder rodar as horas para trás, roubar um pouquinho, fazer de novo nosso caminho se encostar no seu. Não dá para aceitar que, assim de repente, sem aviso ou sinal, esse chão que você beijou, agora seja seu leito e perdão. Por mais que se saiba que valeu delirar e morrer de paixão, há de ter fim essa infinita aflição. Claro que o mundo quer ver uma flor brotar deste impossível chão, mas a este preço... queremos não. O Pedro pedreiro amanheceu ainda mais triste e pensando se continua esperando o trem, esperando o sol, esperando aumento para o mês que vem. Joana Francesa soube da notícia logo de manhã e gemeu de loucura e de torpor. Queria que fosse um pesadelo, queria que ainda fosse madrugada. Chorou por horas, sussurrando para si mesma: acorda, acorda, acorda, acorda, acorda. Os amigos que você levava pra casa pra conversar e comer uma feijoada completa só pensam no próximo encontro. Sem você. Vão continuar com uma fome que nem me contem. E com uma sede de anteontem. Duro vai ser fazer saltar a cerveja estupidamente gelada prum batalhão e botar água no feijão. Antes das linguiças pro tira-gosto, da uca, açúcar, cumbuca de gelo e limão, primeiro vão ter que digerir tamanha tristeza. A cabrocha da sua Estação Primeira de Mangueira, que sempre soube que a sua música não é de levantar poeira, mas que pode entrar no barracão, soube da notícia, deixou a quadra, subiu o morro e pendurou a saia como no amanhecer da quarta-feira, mais triste do que se tivesse perdido seu último carnaval.

Sei que nessa carreira da vida, um dia, chega a hora de ir embora, mesmo quando o corpo quer ficar. E que toda alma de artista quer partir. Como se isso servisse de consolo, você pode até argumentar que toda gente sabe que sua voz vai ficar. Afinal, você mesmo ensinou que tem a voz do dono e tem o dono da voz. Mas assim de chofre, sem aviso, alerta ou preparação? Pode não. A dor é tamanha que a vontade que dá na gente é voltar bem lá atrás e recomeçar tudo. Vai dizer que você também não queria? É saudade ingrata querer dar banda por aí, fazendo grandes planos e chutando lata? Trocando figurinha, matando passarinho, colecionando minhoca? Jogando muito botão, rodopiando pião, fazendo troca-troca? Pois, para ter você outra vez, fazendo tudo de novo, a gente topa. É que, quando pusemos as mãos em você, recebemos sua febre guardada. E ela nos contagiou para sempre. Não venha querer dizer, agora, tira as mãos de mim. Impossível. Já na metade deste dia triste, juntei toda a coragem que encontrei no caminho e fui me despedir de seu corpo. Horas e horas de gente passando por você para, finalmente, eu poder te mirar. Quando vi que o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei. Te estranhei e duvidei. Me arrastei pro tapete atrás da porta, reclamei baixinho e maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar. Tô te contando tudo isso chorando nas entranhas, pois, como você, escrevo para sofrer menos. Choro porque, quando te conheci, aprendi a sonhar e fazer tantos desvarios, que minha vontade era romper com o mundo, queimar meus navios e fazer mil travessuras em noites eternas. Mas e agora? Quem vai me mostrar pra onde é que inda posso ir? Ah, meu camarada. Será que só vai me restar dizer Deus lhe pague? Depois de você me contar tantos segredos lindos, indecentes, como é que você some do mundo sem me avisar, me deixando aqui feito louco a perguntar o que é que a vida vai fazer de mim? Pois quando o compadecimento já ocupava minhas entranhas, veja só, meu caro amigo, qual o quê! Vejo-me acordando ao pé da cama, sem carinho, sem coberta. E descubro – meio assustado, meio alegre – que tive um tremendo pesadelo agora, onde quanto mais tu corria, mais tu ficava. E que foi um sonho medonho, desses que, às vezes, a gente sonha; e baba na fronha; e quer sufocar. E vejo, aliviado, que sonhei contigo e caí da cama. Ai, não briga, ai não me castiga, diz que me ama e eu não sonho mais!


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